sábado, 3 de novembro de 2012

A DONA DA CAMÉLIA - Parte 2


Aquilo não era sala, mas um verdadeiro alvoroço de bom gosto na cara da mesmice habitual das casas dos ricos da época. Havia toques de categoria em todos os detalhes, e tudo, absolutamente tudo, tendo brotado do talento de Bárbara, a dona do pedaço. Babinha trazia consigo a mesma segurança da mãe, família quatrocentona mineira, de que não é original terceirizar mão de obra para decorar a casa, tampouco ornamentar a mesa em dia de festa. Ela mesma fazia, e bastava pôr a mão, para tudo embelezar.

Toda vez que pisava aquele solo, desejava para si cada centímetro do cenário, os espelhos com molduras simples, coloridas, mas chiques porque desalinhadas em uma imprevisível diversidade de estilos, o par de cômodas Luis XIV, que guardava a enorme porta de entrada do salão, os fios de pérolas brancas e negras serpenteados no majestoso lustre de cristal, o magnífico óleo de Pollock, solitário sobre a parede espelhada. Só o Brecheret do canto da janela não a apetecia. Não entendia por que Babinha passara quase noite inteira a ouvir o martelar do Ernani III, só para levar pra casa “aquele horror de cubismo”, não sem antes obrigar Orlando a assinar um cheque de milhares de dólares.

Orlando era o marido que qualquer mulher pediria a Deus. Ela sempre pediu, mas se Deus, até aquele dia, não a ouvira, estava decidida a conseguir por caminhos indignos. Queria não somente a sala, ou uma igual,  mas quem proporcionava todo aquele mundo de luxo e sofisticação. E precisava resolver sua vida o quanto antes, planejava ainda ter filhos, já tinha 35 anos. Achava que Babinha, no fundo, no fundo, não merecia aquele príncipe. A inveja é mesmo assim, ávida por preterir o outro e preferir a si.

O copeiro Manoel adentrou apressado o living, seguido por Vida e Vitamina, os Yorks da casa. Veio avisar que madame logo desceria para recebê-la. Era amiga há décadas da Bárbara, mas jamais lhe fora concedida a intimidade de entrar no quarto do casal quando quisesse, mesmo que Orlando estivesse em SP, como quase sempre, comandando os negócios. Manoel pergunta se a visita quer água, ou suco, ou o quê. Ela, que sempre quis alguma coisa, mesmo hoje, velha, viúva e rica, como não quereria algo naquela manhã de verão em 1975, enquanto seu esmaecido apartamento da Barata Ribeiro cheirava a mofo? Aceitou bombons.

Cinco anos se passaram, desde a tomada da decisão de roubar o marido da melhor amiga. “Hoje é o dia”, maquinava, mãos suadas de quem se envergonha das próprias atitudes, enquanto o chocolate prometido parecia atrasado.

Olhava-se no espelho e imaginava, apavorada, Bárbara descobrindo o minúsculo microfone camuflado na lapela, dentro da enorme camélia que ela mesma, Babinha, lhe dera de presente.  Apertou o botão do gravador quando a dona da casa, mais bonita, chique e charmosa do que nunca, apareceu abrindo com força a enorme porta de correr que dividia a parte íntima do salão de recepções. Recém-chegada da milésima, talvez, viagem a Paris, Bárbara trazia para a amiga uma sacola Vuitton.

Enquanto abria o presente, oferecido por quem seria apunhalada no minuto seguinte, louca por um mimo, como sempre, seus pensamentos eram tragados por um misto de perplexidade, satisfação e remorso. Sim, era má, astuta, mas guardava consigo um pouco de misericórdia, herança da avó, católica fervorosa.

Tanto fez que trouxe o Atanael à lembrança da Bárbara, durante a conversa. Desejava que a amiga contasse detalhes da história de amor clandestina vivida com o professor de tênis do clube, gagalau espadaúdo com quem Babinha mantinha um romance secreto. Tão secreto que só ela, a melhor amiga, sabia. Ela e, agora, a camélia.

Babinha e Atanael se conheceram quando ela fazia dois anos de casada. Não que não amasse o marido, mas as constantes idas dele a São Paulo a deixavam vulnerável. E era justamente esta história que a camélia da outra estava ávida por ouvir. Do início ao fim.

Ilustração: pintura de Pollock

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A DONA DA CAMÉLIA - Parte 1




"O indício mais seguro de se ter nascido com grandes qualidades é ter nascido sem inveja". (François La Rochefoucauld)

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Vive atordoada por um sentimento que lhe corrói a alma, feito britadeira que machuca o asfalto. Tem de tudo, mora de frente para o mar, apartamento no qual caberia o Maracanã velho de guerra no meio do salão. Dorme em lençóis da descendência da dona Maricy, sai na lista telefônica da Lourdes, frequenta o Country ali pertinho, é chamada para todas as festas e desfiles de moda. Mas a inveja lhe come os miolos mesmo agora, quando a geladeira está repleta de garrafas de champanhe Cristal loucas para explodir.

Sempre fora assim. Menina cheirando a talco que mãe emplastrava na pele para conter brotoejas, foi capaz de envenenar o cachorro da melhor amiga do primário, vizinha na periferia de Minas, só porque o seu era vira-lata, e o sedado, um poodle. O bicho não morreu, por obra e graça do veterinário doutor Malaquias, que não cobrava consulta, amava mais os bichanos que a si.

Outro fato ao qual o hipocampo de sua cinzenta jamais conseguiu dar ordem de despejo é o do dia em que, Zippo lascado do pai à mão, ateou fogo no vestido de debutante da “melhor amiga”, esta com aspas, só porque era novo, sendo que o seu já visitara outros três bailes iguais, adornando ora uma prima, ora a filha da Bá, a negra feliz que ajudava criar os pequenos da família. Era o mesmo vestido, a mesma renda adamascada. Só as fitas acetinadas das mangas e decote iam sendo trocadas, conforme pedisse a ocasião. Para tanto, eram anotadas no caderno do seu Adalmir, armarinho de esquina nas paragens alterosas.  

Ao chegar ao Rio de Janeiro, ansiando por ganhar a vida e determinada a sair na coluna do Ibrahim, logo conheceu a melhor amiga da idade adulta. É daquelas que precisam de uma “melhor amiga” em todas as fases da vida, e chamam de “querido” qualquer ser com o que a oferecer, além de degraus a roubar. Colega do Santo Inácio, filha de família tradicional carioca, Bárbara era a chave da qual precisava para abrir as portas do mundo encantado do Country Club, o de Ipanema, porque há outros menos votados mundo afora. 

Com Bárbara, logo apelidada Babinha, conheceu a serra e o Quitandinha, Babinha também a levava aos desfiles da Canadá. Na casa da Bárbara viu, pela primeira vez, "talheres de ouro” na noite de Natal. Jamais ouvira falar em vermeil, a prata dourada, e pensava também que Limoges fosse apenas a cidade francesa onde nascera Renoir - desconhecia a grife da porcelana mais famosa dos ricos pós século XIX.

Quando Bárbara voltou de Paris com a mãe e a notícia de que havia conhecido Orlando Guimarães, da abastada família paulistana, por quem estava apaixonada e com quem iria se casar, internamente ela murchou como rosa há dias sem água na jarra do hall do elevador. A ponto de a amiga perguntar o que havia acontecido, tendo devolvido um “nada, não” com o sorriso sem graça de canto de boca, próprio de quem segue a vida querendo pra si os dias de glória do outro, neste caso, da outra.

O namoro, noivado e casamento de Bárbara e Orlando foram o “potin da saison”, como diziam os colunistas sociais. Belos, ricos, bem nascidos, bronzeados, legítimos representantes da jeunesse dorée, ela da cesta de "cocadinhas" do Turco, o casal sempre entremeava, em fotos, as notícias do Ibraim, do Jacinto de Thormes e da recém-estreada d'O Globo, Nina Chavs, que tanto viria causar boas sensações na grã-finesse carioca décadas à frente.

Enquanto Bárbara e Orlando, já adultos e recém-casados, eram a sensação do eixo Country-Morumbi-Petrópolis, ela prosseguia sua vida insípida de esteticista de um salão de Copacabana, bem relacionada, sim, mas contando os tostões para o dia seguinte, sem telefone em casa, a usar o orelhão.

Cansada de ser coadjuvante, na manhã chuvosa daquele outono de 1970, abriu a janela, ouviu a zoeira da Barata Ribeiro, e prometeu-se ganhar o Orlando de presente de Natal.

A eterna felicidade da Babinha que já se apressasse a contar seus dias.

(No próximo capítulo: e a camélia falava...

(Ilustração: pintura de Antônio Veronese)