"O indício mais seguro de se ter nascido com grandes
qualidades é ter nascido sem inveja". (François La Rochefoucauld)
...
Vive atordoada por um sentimento que lhe corrói a alma, feito britadeira que machuca o asfalto. Tem de tudo, mora de frente para o mar, apartamento no qual caberia o Maracanã velho de guerra no meio do salão. Dorme em lençóis da descendência da dona Maricy, sai na lista telefônica da Lourdes, frequenta o Country ali pertinho, é chamada para todas as festas e desfiles de moda. Mas a inveja lhe come os miolos mesmo agora, quando a geladeira está repleta de garrafas de champanhe Cristal loucas para explodir.
Sempre fora assim. Menina cheirando a talco que mãe emplastrava na pele para conter brotoejas, foi capaz de envenenar o cachorro da melhor amiga do
primário, vizinha na periferia de Minas, só porque o seu era vira-lata, e o sedado, um poodle. O bicho não morreu, por obra
e graça do veterinário doutor Malaquias, que não cobrava consulta, amava mais
os bichanos que a si.
Outro fato ao qual o hipocampo de sua cinzenta jamais conseguiu dar ordem de despejo é o do dia
em que, Zippo lascado do pai à mão, ateou fogo no vestido de debutante da “melhor
amiga”, esta com aspas, só porque era novo, sendo que o seu já visitara outros
três bailes iguais, adornando ora uma prima, ora a filha da Bá, a negra feliz que ajudava criar os pequenos da família. Era o mesmo vestido, a mesma renda
adamascada. Só as fitas acetinadas das mangas e decote iam sendo trocadas, conforme pedisse a ocasião. Para tanto, eram anotadas no caderno do seu Adalmir, armarinho de esquina nas paragens alterosas.
Ao chegar
ao Rio de Janeiro, ansiando por ganhar a vida e determinada a sair na coluna do
Ibrahim, logo conheceu a melhor amiga da idade adulta. É daquelas que precisam de
uma “melhor amiga” em todas as fases da vida, e chamam de “querido” qualquer ser
com o que a oferecer, além de degraus a roubar. Colega do Santo Inácio, filha de
família tradicional carioca, Bárbara era a chave da qual precisava para abrir as
portas do mundo encantado do Country Club, o de Ipanema, porque há outros menos
votados mundo afora.
Com Bárbara, logo apelidada Babinha, conheceu a serra e o Quitandinha, Babinha também a levava aos desfiles da Canadá. Na casa da Bárbara viu, pela primeira vez, "talheres de ouro” na noite de Natal. Jamais ouvira falar em vermeil, a prata dourada, e pensava também que Limoges fosse apenas a cidade francesa onde nascera Renoir - desconhecia a grife da porcelana mais famosa dos ricos pós século XIX.
Com Bárbara, logo apelidada Babinha, conheceu a serra e o Quitandinha, Babinha também a levava aos desfiles da Canadá. Na casa da Bárbara viu, pela primeira vez, "talheres de ouro” na noite de Natal. Jamais ouvira falar em vermeil, a prata dourada, e pensava também que Limoges fosse apenas a cidade francesa onde nascera Renoir - desconhecia a grife da porcelana mais famosa dos ricos pós século XIX.
Quando
Bárbara voltou de Paris com a mãe e a notícia de que havia conhecido Orlando Guimarães,
da abastada família paulistana, por quem estava apaixonada e com quem iria se
casar, internamente ela murchou como rosa há dias sem água na jarra do
hall do elevador. A ponto de a amiga perguntar o que havia acontecido, tendo devolvido um “nada, não” com o sorriso sem graça de canto de boca, próprio de
quem segue a vida querendo pra si os dias de glória do outro, neste caso, da
outra.
O namoro,
noivado e casamento de Bárbara e Orlando foram o “potin da saison”, como
diziam os colunistas sociais. Belos, ricos, bem nascidos, bronzeados, legítimos
representantes da jeunesse dorée, ela da cesta de "cocadinhas" do Turco, o casal
sempre entremeava, em fotos, as notícias do Ibraim, do Jacinto de Thormes e da
recém-estreada d'O Globo, Nina Chavs, que tanto viria causar boas sensações na grã-finesse carioca décadas à frente.
Enquanto
Bárbara e Orlando, já adultos e recém-casados, eram a sensação do eixo
Country-Morumbi-Petrópolis, ela prosseguia sua vida insípida de esteticista de
um salão de Copacabana, bem relacionada, sim, mas contando os tostões para o dia
seguinte, sem telefone em casa, a usar o orelhão.
Cansada de
ser coadjuvante, na manhã chuvosa daquele outono de 1970, abriu a janela, ouviu
a zoeira da Barata Ribeiro, e prometeu-se ganhar o Orlando de presente de Natal.
A eterna felicidade
da Babinha que já se apressasse a contar seus dias.
(No próximo capítulo: e a camélia falava...)
(Ilustração: pintura de Antônio Veronese)
(No próximo capítulo: e a camélia falava...)
(Ilustração: pintura de Antônio Veronese)
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