Orlando nunca fora chegado a guardanapos na cabeça. Honesto,
querido por todos e filho único, herdou um império do pai, que, por
coincidência, também filho único e herdeiro (do Barão de Negromonte, seu bisavô), amontoou
riquezas alicerçadas na siderurgia e na construção civil, fortuna capaz de sustentar 10 gerações dos
Guimarães em altos patamares por um século ou mais sem trabalhar.
Ainda que não precisasse labutar, e fosse um pouco relapso
com horários - não dispensava uma partida de tênis todos os dias de manhã, no
Country -, Orlando era um patrão generoso e pragmático. E mantinha no
escritório, alto de uma torre na Paulista, seu melhor amigo Timóteo, o Tim,
filho da querida Tereza (a negra que o embalou em pergaminhos desde os cueiros),
como CEO de sua holding. Tim formou-se em Harvard, acarinhado financeira e
emocionalmente pelos Guimarães desde que nascera.
Galanteador e amante irrepreensível, a ponto de dar a uma de
suas mulheres filiais um apartamento na Rua 34, nas paragens da Broadway,
Orlando nunca fora ruim como marido. Admirava e honrava, na medida do possível,
a matriz Babinha com toda dedicação, material e afetivamente. Ele estranhou
quando, naquela manhã de quarta-feira, José, o animado faz-tudo do Country,
interrompeu suas sacadas, telefone celular em punho gritando urgência. Do outro
lado da linha, ela, nossa personagem principal, a dona da camélia, dizia
desejar encontrá-lo “ainda hoje”, tendo ouvido do Orlando um convite a aparecer
no clube. Foi definitiva. Precisava ser “hoje em São Paulo”, onde já estava
àquela hora. E completou, batendo o telefone: “a Babinha está te traindo”.
A hipótese de traição não é aceita por homem algum. Até
Judas, o discípulo, sucumbiu à forca ao perceber ter sido traído por sua índole
má. Orlando, amante inveterado, jamais imaginara a possibilidade de Babinha
precisar buscar outra cama fora de casa. “Não, isso é mentira, só pode ser” -
pensava, atordoado, ao tempo em que dava o jogo de tênis por encerrado.
Ao andar de volta pra casa, na calçada interna da Vieira
Souto, manhã de sol acachapante, olhava para a direita, não via o mar, à
esquerda, tudo era branco, um misto de ira e remorso, um pouco de tudo, um
monte de coisa alguma. Culpava-se. Bem merecia ser traído, incontáveis eram
suas amantes. “Mas sou homem, eu posso” - aquiescia, machística e estupidamente.
Travava batalhas por bilhões de reais a cada dia no escritório, mas nenhuma
perda, de qualquer contrato, fisgara-lhe tão fundo o coração como a lança
atirada por telefone pela “melhor amiga” de sua mulher.
Nunca o elevador da portaria até o 10º andar demorara tanto
como naquela manhã. Sequer o Victor, porteiro desde antes do término da
edificação do prédio construído pelos Guimarães, pois fora ajudante de pedreiro
e cativara a atenção do patrão, teve seu sorriso ao abrir a porta de blindex,
pintada cor-de-mel pelo filme de proteção. Olhava cada detalhe de capricho do
apartamento, do hall de entrada ao corredor de acesso à ala íntima, e ao mesmo
tempo odiava e admirava a mulher exuberante e alinhada que a vida lhe dera de
presente. Precisava ter calma, aquela víbora que plantara há pouco a
adversidade em seu coração só poderia estar mentindo.
Apaixonava-se ainda mais por Babinha, todos os dias, quando
se sentava à mesa para o café da manhã. Tudo deixava transparecer grande e
caprichado amor. Flores frescas dentro de copinhos e garrafas minúsculas,
toalhas da Ilha da Madeira, como um café da manhã de lugares marcados em casa
de uma grande dama da sociedade, brisa suave a romper a janela coberta de branco
voal, pães quentinhos feitos em casa e tanto afeto, e lhe era custoso acreditar
que aquela rainha com quem dividia a vida fosse a traidora delatada pela “melhor
amiga” e confidente. E Babinha estava particularmente bonita aquele dia, a
bordo de um caftan turquesa da recém-lançada coleção de roupas íntimas do
Jerson Karl, o maior costureiro do Brasil de todos os tempos, desde antes e
depois da edição da Bíblia.
Esforçava-se por não deixar transparecer para a mulher seu
misto de ira, culpa e inconformidade, pois antes de tomar qualquer providência,
fosse qual fosse a decisão, o bom senso lhe dizia que precisava se alicerçar em
fatos reais, comprováveis. E se aquela “cobra” estivesse mentindo? –
perguntava-se, desacreditando a traição da “melhor amiga”, da qual a Babinha
era refém. Jamais faria algo parecido com o Tim, seu “irmão” e companheiro de
todas as horas.
No Santos Dumont, para o voo de quase todos o dias, nem teve
cabeça para conversar com Rocha, o piloto do seu Citation Ten, um dos 10
jatinhos da holding Guimarães, todos fabricados pela Cessna, avaliado em 20
milhões de dólares. Sequer abrira a hoje finada "Gazeta Mercantil" daquela manhã para inteirar-se
dos negócios.
Ao chegar ao alto de sua torre na Paulista, foi num abrir e
fechar de portas, como um lobo de cauda eriçada a contrapor os tufos de carrapicho à
beira do precipício, sem se ater a alguém ou ao cenário, até se deparar com
ela, a delatora, sentada na sala de espera a bordo de um tailleur Chanel vintage
verde-água, longas e torneadas panturrilhas descobertas, mais bronzeadas do que
nunca. Percebia-se no ar que ela programara o passo a passo daquele encontro
durante toda vida, como uma diretora teatral de musicais nas paragens da Time
Square.
Mas como nem a traição que o vitimava lhe tirava o instinto
de galanteador, Orlando sentiu no ar a sensualidade do cheiro de Arpège, mesmo
perfume que exalava da Lily de Carvalho desde sempre, com o qual a “melhor amiga”
de sua mulher banhara as saboneteiras. Ela foi rápida no gatilho, como faz a loba em pele de cordeira ao mirar a suculenta presa: levantou-se, apertou o
botão do gravador com o dedo indicador, e com o polegar equilibrou o minúsculo aparelho
na altura do ouvido do Orlando. Lá estava a voz da Babinha, melosa, luxuriante,
“puta!”, ele exclamou, contando para a “melhor amiga” as histórias de suas tardes
de sexo animal com a Atanael, o professor de tênis do Country.
Um ano depois, a coluna do Turco anunciava o segundo
casamento de Orlando Guimarães. Agora, com a dona da camélia dos ouvidos mais matreiros
e ambiciosos da chamada alta sociedade carioca.
Foto: Country Club