Aquilo não era sala, mas um verdadeiro alvoroço de bom gosto na cara da mesmice habitual das casas dos ricos da época. Havia toques de categoria em todos os detalhes, e tudo, absolutamente tudo, tendo brotado do talento de Bárbara, a dona do pedaço. Babinha trazia consigo a mesma segurança da mãe, família quatrocentona mineira, de que não é original terceirizar mão de obra para decorar a casa, tampouco ornamentar a mesa em dia de festa. Ela mesma fazia, e bastava pôr a mão, para tudo embelezar.
Toda vez que pisava aquele solo, desejava para si cada
centímetro do cenário, os espelhos com molduras simples, coloridas, mas chiques
porque desalinhadas em uma imprevisível diversidade de estilos, o par de cômodas
Luis XIV, que guardava a enorme porta de entrada do salão, os fios de pérolas
brancas e negras serpenteados no majestoso lustre de cristal, o magnífico óleo
de Pollock, solitário sobre a parede espelhada. Só o Brecheret do canto da
janela não a apetecia. Não entendia por que Babinha passara quase noite inteira
a ouvir o martelar do Ernani III, só para levar pra casa “aquele horror de
cubismo”, não sem antes obrigar Orlando a assinar um cheque de milhares de
dólares.
Orlando era o marido que qualquer mulher pediria a Deus. Ela
sempre pediu, mas se Deus, até aquele dia, não a ouvira, estava decidida a conseguir
por caminhos indignos. Queria não somente a sala, ou uma igual, mas quem proporcionava todo aquele mundo de
luxo e sofisticação. E precisava resolver sua vida o quanto antes, planejava
ainda ter filhos, já tinha 35 anos. Achava que Babinha, no fundo, no fundo, não
merecia aquele príncipe. A inveja é mesmo assim, ávida por preterir o outro e
preferir a si.
O copeiro Manoel adentrou apressado o living, seguido por
Vida e Vitamina, os Yorks da casa. Veio avisar que madame logo desceria para
recebê-la. Era amiga há décadas da Bárbara, mas jamais lhe fora concedida a
intimidade de entrar no quarto do casal quando quisesse, mesmo que Orlando
estivesse em SP, como quase sempre, comandando os negócios. Manoel
pergunta se a visita quer água, ou suco, ou o quê. Ela, que sempre quis alguma
coisa, mesmo hoje, velha, viúva e rica, como não quereria algo naquela manhã de
verão em 1975, enquanto seu esmaecido apartamento da Barata Ribeiro cheirava a
mofo? Aceitou bombons.
Cinco anos se passaram, desde a tomada da decisão de roubar
o marido da melhor amiga. “Hoje é o dia”, maquinava, mãos suadas de quem se
envergonha das próprias atitudes, enquanto o chocolate prometido parecia atrasado.
Olhava-se no espelho e imaginava, apavorada, Bárbara
descobrindo o minúsculo microfone camuflado na lapela, dentro da enorme camélia
que ela mesma, Babinha, lhe dera de presente. Apertou o botão do gravador quando a dona da
casa, mais bonita, chique e charmosa do que nunca, apareceu abrindo com força a
enorme porta de correr que dividia a parte íntima do salão de recepções.
Recém-chegada da milésima, talvez, viagem a Paris, Bárbara trazia para a amiga
uma sacola Vuitton.
Enquanto abria o presente, oferecido por quem seria
apunhalada no minuto seguinte, louca por um mimo, como sempre, seus pensamentos
eram tragados por um misto de perplexidade, satisfação e remorso. Sim, era má,
astuta, mas guardava consigo um pouco de misericórdia, herança da avó, católica
fervorosa.
Tanto fez que trouxe o Atanael à lembrança da Bárbara,
durante a conversa. Desejava que a amiga contasse detalhes da história de amor
clandestina vivida com o professor de tênis do clube, gagalau espadaúdo com
quem Babinha mantinha um romance secreto. Tão secreto que só ela, a melhor
amiga, sabia. Ela e, agora, a camélia.
Babinha e Atanael se conheceram quando ela fazia dois anos
de casada. Não que não amasse o marido, mas as constantes idas dele a São Paulo
a deixavam vulnerável. E era justamente esta história que a camélia da outra
estava ávida por ouvir. Do início ao fim.
Ilustração: pintura de Pollock